Livro da editora Record, 2016.

O depoimento da pequena Anne Frank, morta pelos nazistas após passar anos escondida no sótão de uma casa em Amsterdã, ainda hoje emociona milhões de leitores. Seu diário narra sentimentos, os medos e as pequenas alegrias de uma menina judia que, como sua família, lutou em vão para sobreviver ao Holocausto.
Trecho retirado da Quarta Capa
Frank, Anne. O Diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2016.



O Diário de Anne Frank é um livro surpreendente em todos os sentidos. A começar por seu gênero textual, o diário. Até mesmo o mais bookaholic dos mortais costuma cultivar uma diversidade de títulos em seu leque de leituras, mas, dificilmente, uma diversidade de gêneros. E sabemos que os gêneros textuais podem mudar totalmente a maneira como lidamos com a leitura. O diário, em sua essência, é um gênero extremamente pessoal, o que, de certa forma, aproxima ainda mais o leitor dos personagens. Em O Diário de Anne Frank, temos esse pessoalidade duplicada, por se tratar de pessoas que, de fato, existiram.
Manuscrito original do diário de Anne Frank.

Textualmente falando, O Diário de Anne Frank é um livro simples de se ler, e isso se deve, em grande parte, a seu gênero textual. Há ainda um outro fator a se considerar para essa “simplicidade linguística”, a sua autora é uma garota de 13-15 anos. Contudo, é importante ressaltar, que, apesar da pouca idade, Anne possui uma escrita muito madura e cuidadosa para uma adolescente. Naturalmente o livro passou por inúmeras revisões gramaticais, mas sabemos muito bem que uma boa escrita não se constitui apenas de gramática.
A simplicidade textual, entretanto, não se mantém na temática. Trata-se de um diário escrito entre 1942 e 1944, período, no qual a II Guerra Mundial (1939-1945) dizimava milhares de pessoas ao redor do globo, portanto boa parte de seus relatos giram em torno de como as pessoas - principalmente judeus - tentavam escapar dos horrores provocados pelo Nazismo.
Vista frontal do Anexo Secreto, o esconderijo dos Frank e seus amigos.

TRECHO I: O DILEMA DA ORIGEM
“Excelentes espécimes da humanidade, esses alemães, e pensar que na verdade sou um deles! Não, isso não é verdade, Hitler retirou nossa nacionalidade há muito tempo. E, além disso, não há maiores inimigos na terra do que alemães e judeus.”
(Sexta-feira, 9 de outubro de 1942)
Anne Frank nasceu em Frankfurt, na Alemanha, em 12 de junho de 1929. Seus familiares (Otto Frank, pai; Edith Frank, mãe e Margot Frank, irmã mais velha) eram todos alemães também. Anos mais tarde, a família Frank precisou se mudar para Amsterdã, Holanda, devido a uma crescente onda antissemita em Frankfurt, impulsionada, sobretudo, pela vitória do Partido Nazista de Adolf Hitler naquela cidade. Infelizmente o antissemitismo ultrapassou as terras germânicas chegando até a Holanda. Ultrapassou não somente os limites geográficos, mas, também, os limites humanos. Tornando alemães (nazistas, obviamente) e judeus os “maiores inimigos da terra”.  

TRECHO II: ESTUDOS NO ANEXO SECRETO
“Aulas: Curso semanal de taquigrafia por correspondência. Curso de inglês, francês, matemática e história oferecidos a qualquer hora do dia ou noite. Pagamento na forma de aulas, por exemplo, de holandês.”
(Terça-feira, 17 de novembro de 1942)
O estudo de línguas, história, geografia, matemática, dentre outras disciplinas, era uma realidade entre as irmãs Frank no Anexo Secreto. A leitura de livros de ficção também. Anne se revela uma leitora ávida, não é à toa que sua escrita é uma concretização do seu interesse por línguas e de suas múltiplas leituras. Encontramos diversas passagens no diário, nas quais Anne comenta sobre os livros que anda lendo, ou ainda, sobre o que precisa estudar no dia. É muito encantadora essa preocupação dos Frank, de forma geral, com a própria educação. Além de ser um ótimo instrumento para driblar a monotonia do Anexo, a educação proporcionou esperanças a Anne e, portanto, vivacidade em meio aquele sofrimento.
Anne em sua escola, 1940.

TRECHO III: O PAPEL É MAIS PACIENTE QUE AS PESSOAS
“Estamos trancados nesta casa como se fôssemos leprosos, especialmente durante o inverno, o Natal e os feriados de Ano-Novo. Na verdade, eu nem deveria estar escrevendo nada disso, pois pareço ingrata, mas não posso guardar tudo dentro de mim, portanto repito o que disse no início: ‘O papel é mais paciente do que as pessoas.’”
(Sexta-feira, 24 de dezembro de 1943)
Já é agonizante pensar na possibilidade de passar três anos de sua vida preso num lugar com sua família e mais quatro conhecidos, imagina vivenciar. Acrescento a isso, o fato de que você deverá viver em silêncio, para não chamar a atenção de possíveis inimigos; de que você não chegará perto da janelas, nem tomará tantos banhos quanto gostaria, ou ainda, de que não poderá comer o que quer e o quanto quer, pois tudo é muito escasso. É monótono, enfadonho e enlouquecedor. Além dos estudos formais e leituras, Anne Frank adotou, também, a escrita como uma válvula de escape daquele mundo inerte e debilitante e é, por meio dela, que temos acesso às suas memórias.

TRECHO IV: MUDANÇAS
“A gente não faz ideia de como mudou até que a mudança já tenha acontecido. Eu não mudei de um jeito radical, tudo em mim é diferente: minhas opiniões, minhas ideias, a visão crítica. Por dentro, por fora, nada é igual.”
(Sábado, 25 de março de 1944)
Anne Frank escreveu seu diário dos 13 aos 15 anos e fica evidente ao leitor a mudança que ocorre ao longo desses três anos. Assim como qualquer ser humano, Anne tem os seus desafetos, contudo sua demasiada preocupação com isso, em suas primeiras páginas de diário, se torna evidente em sua delonga nos comentários sobre tudo o que gosta e, principalmente, o que não gosta em suas colegas de sala, por exemplo. Há, ainda, o relacionamento enfraquecido que Anne nutre por sua mãe, que posteriormente é melhorado, em função do amadurecimento da garota. Nós leitores vamos crescendo e amadurecendo nossas visões junto com Anne, no decorrer do seu livro.
Série de fotos, ano desconhecido.

TRECHO V: ANNE FRANK VIVE!
“Não quero que minha vida tenha passado em vão, como a maioria das pessoas. Quero ser útil ou trazer alegria a todas as pessoas, mesmo àquelas que jamais conheci. Quero continuar vivendo depois da morte!”
(Quarta-feira, 5 de abril de 1944)

Essa é uma passagem muito delicada e significativa, nela Anne Frank expõe todos os seus anseios e sonhos. A luta pelo direito mais básico de um ser humano, o direito à vida, foi em vão, contudo sua memória permanece viva para lembrar a todos aqueles que cultivam a intolerância religiosa - e eu estendo aqui todos os preconceitos, as mais perfeitas manifestações do não-amor - de que ela mata, seja direta ou indiretamente. Anne vive, pois conseguiu imortalizar os seus e se imortalizou através da escrita.