Livro da editora Nova Fronteira, 2008.

       Thrity Umrigar deposita com maestria, em seu universo literário, uma sensibilidade humana impressionante. Seus livros não são impregnados de maniqueísmo(s), algo tão comum na caracterização de personagens por aí afora, estes não são, simplesmente, bipartidos em mocinhos e vilões, todos eles carregam consigo erros e acertos, elementos inerentes a nossa natureza humana. Esse olhar múltiplo do ser torna os personagens da autora proximais e palpáveis a nós leitores. Em Um Lugar para Todos não temos um ou dois protagonistas, a narrativa se debruça sobre a vida de vários moradores que habitam o edifício Wadia, uma construção de classe média localizada na grande Bombaim (ou Mumbai), a maior e mais importante cidade indiana. Nele habitam diversos parses, um grupo étnico-religioso que constitui a maior população praticante do Zoroastrismo na Índia. 
       O livro se divide em dez capítulos e em cada um deles são desenvolvidos alguns detalhes da vida de um morador. Ao longo destes dez capítulos, com seus dez grandes personagens, Thrity Umrigar explora temáticas sócio-culturais bastante significativas para compreendermos o que é a Índia moderna. Arrisco a dizer que a Índia é a irmã do Brasil no Oriente, muito do que ocorre por lá, acontece de forma muitíssimo semelhante por aqui. Obviamente, há muitas eventualidades na narrativa que diferem deveras da conjuntura sócio-cultural brasileira. Temas como casamento, educação, machismo, racismo, solidão e diferenças sociais são abordados na obra da Thrity. O ponto de partida da narrativa é o casamento de um morador que cresceu no Wadia, as pessoas presentes na celebração (e até mesmo as não presentes) revivem suas histórias durante o festejo e somos convidados a percorrer junto com eles suas amargas e doces lembranças. 

                                
A indiana Thrity Umrigar, além de escritora, é professora de literatura e jornalista.

Obs.: A descrição dos trechos contém alguns spoilers.

TRECHO I: O DOMÍNIO MATRIARCAL
“Dosa descobriu um meio de realizar sua ambição frustrada de ser médica. Em lugar de consertar corpos defeituosos, tentava consertar vidas defeituosas. [...] O credo de Dosa nunca foi a reconciliação familiar, mas o domínio matriarcal, e ela treinou seu exército de donas de casa frustradas com base nessa filosofia.”
(Página 47)
       Dosamai Popat é uma personagem odiosa a princípio. A velha viúva gasta boa parte do seu tempo observando e interferindo na vida alheia dos residentes do Wadia. Todos no edifício a conhecem por sua língua ferina, mas, ainda assim, sua casa é repleta de donas de casa que vão até a anciã despejar sua frustrações conjugais. Quando jovem, Dosamai foi uma brilhante e prodigiosa estudante que teve seus sonhos de cursar medicina interrompidos, devido a um casamento arranjado por seu pai. Assim como a maioria das jovens indianas, Dosa teve de abdicar dos estudos em função de uma vida estritamente doméstica e subserviente. Tais acontecimentos foram tornando, aos poucos, Dosamai numa mulher amarga. E convenhamos que ninguém é amargo à toa, muitas vezes, por trás da amargura “sem causa” há uma história repleta de privações. 

TRECHO II: DIGA-ME ONDE ESTÁS E TE DIREI SE ÉS BRANCO

“Ali, ele não conseguia fugir da cor da própria pele. Em Bombaim, a pele clara de Jimmy sempre fora sinal de privilégio, um símbolo de status. Na Inglaterra do final da década de 1960, porém, sua cor não era boa o bastante. Não era clara o bastante.”
(Página 69)
       Jimmy Kanga, pai do recém casado Mehernosh Kanga, é o mais bem-sucedido morador do Wadia. O homem prosperou na carreira de advogado em Bombaim, em virtude da sua graduação na universidade de Oxford na Inglaterra. A maioria dos parses que saiam para estudar no exterior não regressava à Índia, contudo, Jimmy não suportava a ideia de ser visto como um indivíduo inferior por conta da cor de sua pele, ele preferia ser “um peixão num lago pequeno a ser um peixinho num lago grande.” (Página 70). É interessante observar que esta questão racial, muito recorrente entre os indianos, se aplica de forma muito semelhante a maioria dos brasileiros. Onde uma pessoa considerada branca aqui, pode ser vista como não branca, “latina” ou negra na Europa (e em lugares afins). 

TRECHO III: A REPRODUÇÃO DO MACHISMO
“Embora raras vezes criticasse Coomi diretamente, a nora jamais conseguia evitar a sensação de que Khorshed [a sogra] vigiava todos os seus movimentos, esperando um tropeço, pronta para julgar e criticar. Se Coomi deixava a luz acesa na cozinha ou na sala de jantar, Khorshed silenciosamente vinha atrás e apagava. Ou refazia as tarefas domésticas depois de Coomi já ter limpado a casa.”
(Página 112)
       Sogras tiranas que perseguem noras é um enredo comum nas narrativas que envolvem famílias indianas. Esse círculo vicioso da perseguição, que perpassa gerações, se deve muito a constituição estritamente patriarcal da sociedade indiana. As mães, sobretudo as mães viúvas, como é o caso de Khorshed, são dependentes de uma figura masculina, materializada em marido, ou simplesmente filho(s), quando viúvas. A perda de um deles para um novo membro da família acaba por deixar a mulher ainda mais preocupada, ainda que inconscientemente, sobre como proceder numa sociedade na qual as mulheres dificilmente tem voz. Em consequência disso, muitas iniciam uma verdadeira caçada às noras utilizando da pressão psicológica e opressão verbal, a fim de minimizar uma dor que não é causada pelo seu alvo. Evidentemente, que casos assim não são tão comuns na Índia de hoje, devido a ocidentalização desta, contudo ainda é uma situação recorrente, sobretudo, nas pequenas cidades.